terça-feira, 28 de outubro de 2008

Rei da Vela - A síntese da revolta

O Brasil vivia o início de sua ditadura militar e por aqui a revolta também se espraiava na produção cultural. Festivais tomavam conta da televisão, “engajados” e “alienados” travavam suas batalhas. A Jovem Guarda aparecia como produto da indústria cultural. O Teatro de Arena trazia o marxismo aos palcos, era duro, político e buscava uma identidade nacional para o Teatro. O palco era em forma de arena e o objetivo seria romper a “quarta parede” que divide atores e público. O estilo se colocava contra o chamado Teatro Brasileiro de Comédia, uma forma européia de dramaturgia trazida pelos imigrantes. É do questionador Arena que surge José Celso Correa Martinez, líder do Teatro Oficina.

O grupo Oficina também buscava a identidade do brasileiro, era crítico e pretendia revolucionar o teatro nacional, o fez. Em 1967, após um incêndio no galpão, o grupo procurou uma nova montagem para angariar fundos, ir a fundo na questão da identidade, refletir sobre a nova fase do país (ditadura militar) e explicitar toda a rebeldia que tomava conta dos quatro cantos do planeta. Então, Zé Celso pediu a grupos de dramaturgos, estilistas, artistas plásticos, cineastas e músicos para enviarem peças, curtas, trajes e músicas que resumissem tudo o que acontecia no Brasil e no mundo, para montar um espetáculo. Depois de vasculhar bastante, uma leitura em voz alta feita por Renato Borghi (ator), na sala de seu apartamento, provocou um estalo nas mentes do Oficina. O texto trazia a potência retórica necessária para o espetáculo, era satírico, sexual, revelava a face da sociedade brasileira e sua burguesia, denunciava a anti-história desse povo que só viveu a exploração em provento de uma minoria. A linguagem da peça, antiilusionista, dialogava com o público, rompia a “quarta parede” e incitava a reflexão do espectador. A peça era “O Rei da Vela” de Oswald de Andrade.

Escrita e publicada na década de 30, sobre os efeitos da crise de 1929, das revoluções de 30 e 32, a peça trazia a experiência de Oswald como burguês falido vivendo em meio aos agiotas, grandes beneficiários da crise. A peça conta a história de Abelardo I, agiota e industrial de velas que se casa com Heloísa de Lesbos, oriunda de uma família de aristocratas falidos. O casamento é de interesse, juntar o capital burguês industrial de Abelardo I com a tradição e o nome de Helena. A velha história da busca pela nobreza. A aristocracia se vende para os novos ricos, visando continuar no poder. A burguesia por sua vez é refém do capital estrangeiro, retratado na peça pelo personagem de Mr. Jones, um rico banqueiro americano. Os poderes que regem o nosso país são retratados nesse triunvirato formado pela aristocracia rural, burguesia nacional e serventia ao capital estrangeiro. A vela retrata a incipiente industrialização brasileira e a tradição/dependência do povo a esse artefato. Sem luz a vela é necessária e por aqui a tradição manda o defunto ser enterrado com uma. Lucro certo, apoiado nas massas, esse negócio de velas.

A peça é dividida em três atos. O primeiro se passa no escritório de usura de Abelardo I onde ele e seu secretário, Abelardo II, expulsam emigrantes endividados a chicotadas. Abelardo II se diz socialista, nele é caracterizado o socialismo oportunista, de fachada, para garantir os interesses pessoais e de classe da burguesia. Então, entra em cena Heloísa, Abelardo I logo vê o casamento a sua porta. O antiilusionismo permite essa fala de Abelardo I a respeito do casamento: “...comprar os velhos brasões, isso até parece teatro do século XIX, mas no Brasil é novo.” Nesse ato também é apresentado Mr. Jones, o “benfeitor” americano. Sobre ele, Abelardo I tem noção de seu papel como burguês de país periférico, que deve tudo que tem ao capital estrangeiro, se assume como lacaio e nas palavras dele: “É por isso que possuo uma lancha , uma ilha e você...”

O segundo ato se passa na ilha que Abelardo I comprou para Heloísa. Nela caem as máscaras da alta sociedade. Abelardo I tenta seduzir a mãe de Heloísa, Cesarina, que se mostra acessível às investidas. É apresentado ao público o caráter homossexual de Heloísa de Lesbos, como o próprio nome sugere, e o de seu irmão Totó-Fruta-do-Conde que roubara o namorado da irmã Joana, apelidada como João dos Divãs. O ataque as aparências continua quando D.Poloca, tia de Heloisa com mais de 70 anos e virgem, sente-se atraída por Abelardo I e Mr. Jones atraído pelo chofer. Outro personagem também entra em cena para trazer a crítica política à alta sociedade, é Perdigoto, irmão de Heloísa, jogador, bêbado e fascista. Tem a idéia de montar uma milícia fascista e tomar o poder, Abelardo I apóia a idéia desde que traga a manutenção da ordem que o enriquece.

No terceiro e último ato Abelardo II aplica um golpe em Abelardo I, toma todo o seu dinheiro e sugere o suicídio. Em seu testamento deixa tudo para Abelardo II, inclusive Heloísa e sua família. Em sua última fala Abelardo I proclama que a burguesia nacional está fadada a desgraça, essa virá das mãos do proletário unido, mas até lá, burguesia, aristocracia e o capital estrangeiro reinarão absoluto na terra das bananas. Esse é o sistema de substituição, morre um Rei da Vela e nasce outro, sai um Fernando e entra outro, todos lacaios do capital estrangeiro.

Se a peça reflete a década de 30, por que encená-la em 67/68? A resposta é desanimadora. A sociedade brasileira vive a história de substituição dos Reis da Vela já há muito tempo, até os dias de hoje. De um Abelardo para outro, de um Fernando para outro. A década de 30 marcou o inicio do Estado Novo de Getúlio Vargas, apoiado nas massas, populista e autoritário. Negociava tanto com os Americanos quanto com a Alemanha nazi-fascista, mostrando sua flexibilidade moral e oportunismo. Nesse período,assim como em 1968, o poder era de certa forma centralizado e os pilares da sociedade eram a família, a Igreja e o Estado. O espetáculo atacava todos eles. Com palavras, gestos, cenografia, músicas a sexualidade aflorava e as máscaras da sociedade iam caindo. Abelardo II era a síntese de Getúlio e João Goulart, sua maquiagem e vestimentas traziam traços do oportunista que transita da direita para a esquerda, um verdadeiro pelego. Personagem ainda marcante na realidade brasileira.

O espetáculo marcou a eclosão do movimento tropicalista. Revolucionou o teatro nacional, era um “teatro agressivo”, atacava seu público. Era circo, teatro de revista, Brecht, Shakespeare, chanchada, deboche, pornografia, Chacrinha, enfim, um verdadeiro carnaval. Buscava o atrevimento estético do cinema novo. Trazia a música de Caetano. Tudo para retratar o surrealismo brasileiro. Segundo o próprio Zé Celso em seu manifesto, publicado em 5 de fevereiro de 1968 no “Última Hora”: "Tudo procura transmitir essa realidade de muito barulho por nada, onde todos os caminhos tentados para superá-la até agora se mostram inviáveis. Tudo procura mostrar o imenso cadáver que tem sido a não-história do Brasil destes últimos anos, à qual nós todos acendemos nossa vela para trazer, através de nossa atividade cotidiana, alento. 1933-1967: são 34 anos. Duas gerações pelo menos levaram suas velas. E o corpo continua gangrenado. "

Hoje mais gerações levaram suas velas e o ano de 68 passou, os movimentos foram reprimidos e a realidade brasileira parece ainda viver da substituição dos Reis da Vela. Por outro lado, a expectativa de que algo vai acontecer volta à tona. Protestos internacionais voltaram no fim do século passado, nas reuniões da OMC, G8 e FMI. Seattle, Genova, Praga, Davos, Genebra, Quebec, Washington entre outras formaram novos palcos para essa nova esquerda. Black Blocs, Reclaim the Streets com suas festas nas ruas, grupos anarquistas ecologistas, o levante Zapatista em Chiapas, todos eles apontam para um novo futuro, a formação de redes de solidariedade, um antipoder para fazer frente aos poderosos Reis da Vela e ao capital transnacional que impera nesse começo de século.

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