sábado, 1 de novembro de 2008

Batalha entre imobiliárias e órgãos de preservação do patrimônio histórico ainda promete

Tombamento histórico e setor imobiliário travam uma guerra antiga, desenhada por demolições e interesses privados. No meio dessa batalha a sociedade acaba sofrendo com as conseqüências. Essas batalhas chegaram esse ano na Câmara dos Vereadores de São Paulo, onde as pressões do setor imobiliário exerceram seu poder para mudar as regras dos processos de tombamento histórico. Tais mudanças enfraqueceriam o Conpresp (órgão municipal de preservação histórica) e dariam a Câmara um poder de avalizar, ou não, os projetos de tombamento. Em meio a essa polêmica existem aqueles que defendem os interesses imobiliários e aqueles que acreditam que a preservação do patrimônio histórico não pode ficar refém do setor imobiliário.

Em entrevista concedida, o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Nestor Goulart Reis Filho, ex-presidente do Condephaat (órgão estadual de preservação histórica), defendeu uma reestruturação dentro do Conpresp, uma injetada real de dinheiro que possibilite a contratação de arquitetos de renome, e ao mesmo criar projetos claros nos bairros da cidade, para não prejudicar os investimentos feitos pelas construtoras.

Numa tentativa de enfraquecer o Conpresp, os vereadores da Câmara de São Paulo propuseram uma lei que tiraria o poder do órgão, dependendo do aval da Câmara para que as decisões relativas à área envoltória aos locais tombados fossem tomadas. Projeto que o prefeito Gilberto Kassab vetou. Esse veto aconteceu por influência também do governador de São Paulo, Jose Serra, nascido e criado na Mooca e muito ligado aos valores do local, que em julho desse ano também teve locais tombados. “Os empresários que me desculpem, mas não vai ser transferindo o conselho para os vereadores que o problema será resolvido. Se vereador conseguisse proteger patrimônio público, a área dos mananciais não estaria invadida por um milhão de pessoas urinando na água que bebemos todos os dias” afirmou o arquiteto Goulart Reis.

Do outro lado da história, estão os envolvidos com o setor imobiliário, como é o caso de Cláudio Bernardes, vice-presidente do Secovi, o sindicato do setor imobiliário. Adotando um discurso mais cauteloso, a principal reclamação de Bernardes é referente à demora de alguns processos iniciados pelo Conpresp, o que segundo ele, causa grandes prejuízos às construtoras, que iniciam seus projetos, gastam com o planejamento, e quando vão construir o órgão “resolve” tombar e impede qualquer alteração. “Acho que isso (restrição de altura dos prédios no entorno dos parques da aclimação e do Ipiranga) foi a gota d´água. As empresas verificam onde tem demanda, definem o tamanho do imóvel, acham um terreno que se adequa à demanda. Vêem as restrições, as regras de zoneamento, fazem as contas. Pagam R$ 20 milhões, fazem projeto e entram para aprovar. Nesse período, mudam a lei e não podem mais continuar o projeto”, afirmou Bernardes.

Nessa toada, o vereador do PSDB Dalton Silvano propôs um projeto que iria indenizar construtoras que já tivessem tido algum gasto em áreas que posteriormente foram tombadas pelo Conpresp, como é o caso da Camargo Corrêa, que adquiriu um terreno em frente ao parque da aclimação, avaliado em pelo menos R$ 9 milhões, e que como teve aberto seu processo de tombamento, fica restrita a construção de grandes obras ao seu redor. Nem o vereador nem a construtora quiseram se pronunciar sobre o caso.

No ano de 2008 o Condephaat, órgão da Secretaria de Estado da Cultura, irá completar 40 anos, e já no embalo dessa polêmica, realizou nos dias 22 e 23 de outubro um encontro para discutir temas relacionados à preservação de bens tombados. O seminário Paisagens Culturais: Conceitos e Critérios de Preservação foi aberto no dia 22 pelo secretário da Cultura, João Sayad; pelo presidente do Condephaat, Adílson Avansi de Abreu; e por Antônio Augusto Arantes Neto, antropólogo e ex-presidente do órgão.
“As cidades crescem e, muitas vezes, o tombamento de um bem cria limites públicos para o seu uso privado, principalmente quando entra em cena a especulação imobiliária”, observa Adílson Avansi. “O objetivo deste seminário é discutir a harmonização dos interesses públicos e privados, quando se fala em preservação.”

O primeiro debate, intitulado Paisagens Naturais: a relação homem-natureza, contou com a participação do geógrafo Aziz Ab’Saber, da USP, ex-presidente do Condephaat e responsável pelo tombamento da Serra do Mar; da bióloga da USP Sueli Furlan; e de Roberto Varjabedian, do Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente do Ministério Público. A coordenação foi de Sérgio Alex Constant de Almeida, conselheiro do Condephaat e representante da Secretaria do Meio Ambiente no órgão.
Roberto Varjabedian alertou para a necessidade do resgate, do respeito, e da difusão dos conceitos teóricos do planejamento e dos documentos dos órgãos responsáveis pela preservação. Para ele, “muitos conceitos hoje não são aplicados e essa perda de referenciais é prejudicial ao ambiente a ser protegido”. Ele acredita que a preservação deve ser feita com a integração das esferas de competência (municipal, estadual e federal) sem a perda da linha conceitual e teórica dos órgãos responsáveis.
Sueli Furlan ressalta a necessidade de um bom suporte técnico para a aplicação dos conceitos de preservação. “É preciso condições [melhores] para o trabalho; a equipe não pode ser pequena e sua atuação tem que ter o mesmo prestígio que qualquer outro trabalho técnico dentro da estrutura governamental”.
A bióloga também afirma que para a preservação “devemos entender que no local existe um conjunto de valores históricos, visuais e ecológicos que se interagem, e que precisam ser sempre ressaltados”. Ela sugere que a cobertura de um projeto deve ser contínua e pouco fragmentada, o que depende de uma boa análise desses valores.

Aziz Ab’Saber dirigiu críticas às “pressões que os neocapitalistas exercem no espaço urbano e natural” com especulações imobiliárias. Para ele, “no nosso tempo tudo virou mercadoria, seja no chão ou no céu, e por isso eles [os especuladores] não querem que nenhum espaço seja tombado”.
O geógrafo diz que falta entendermos o conceito de “espaço total”, que interliga as reminiscências de áreas naturais, grandes áreas de água e ecossistemas e conjuntos urbanos. Devemos, para ele, expandir esse conceito ao interior da área metropolitana. “O plano diretor de uma cidade é bizarramente burocrático, há de se ter um plano de funcionalidade, que se inicia por um bom estudo”. “O processo de tombamento também tem de ser pensado na funcionalidade, não devemos tombar apenas construções com valor arquitetônico, há de se considerar o funcionamento do ecossistema urbano, os desgastes das drenagens”, acrescenta.

O intelectual de 83 anos ainda alerta que deve haver uma parceria entre os que estudam para tombar e os que têm que manter intacto o espaço tombado. Ele finaliza ao dizer que teme o modo como as expansões urbanas ocorrem atualmente, pois são regidas pelas pressões dos “neocapitalistas”. “Isso é caos para nossos filhos e netos”.

A identificação do problema e a posterior justificação do projeto de tombamento, para Ab’Saber, deve ser feita pelo Condephaat, cuja força “se encontra naqueles que lá trabalham”.


O segundo dia do seminário Paisagens Culturais: Conceitos e Critérios de Preservação, realizado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat), órgão da Secretaria de Estado da Cultura, teve como foco a apresentação de projetos de intervenção no espaço urbano. O tema do debate ocorrido foi Paisagens Culturais: entre conceitos e práticas – projetos de intervenção.

A mesa coordenada pela historiadora Marly Rodrigues, do Condephaat, contou com a participação de José Rollemberg Mello Filho, do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura Municipal de São Paulo, de Marcelo C. Ferraz, arquiteto responsável por vários projetos envolvendo bens tombados e de Eduardo Della Mano, arquiteto que representou o Secovi - Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo.

José Rollemberg apresentou, no início do debate, um projeto de revitalização do “Eixo de Santo Amaro”, que vai da Igreja Matriz até a Biblioteca Kennedy, passando pela Rua capitão Tiago Luz. O eixo, segundo ele, abriga grande valor histórico da região, que um dia fora uma cidade. Atualmente, o local é ocupado pelo comércio informal de forma desordenada.

O objetivo do projeto é organizar os camelôs ali instalados, ampliar as calçadas e os espaços públicos, recuperar os espaços abertos e os edifícios históricos, arborizar o local e revitalizar o largo da Igreja Matriz para realizar festas e eventos da comunidade.

Marcelo Ferraz apresentou três projetos semelhantes, que visam também recuperar áreas necessitadas e que beneficiam a comunidade da região. Para ele, “o passado de pedra só nos interessa quando vivo, e é necessário preservar e restaurá-lo para torná-lo vivo, útil e servir de referência ao futuro”.

O primeiro projeto que apresentou foi a revitalização do “KKKK”, um conjunto de galpões feitos pelos imigrantes japoneses na cidade de Registro, interior de São Paulo. As construções foram tombadas pelo Condephaat em 1982, e o projeto do arquiteto transformou os prédios da Companhia Ultramarina de

Desenvolvimento em locais úteis à população da cidade. Um dos galpões transformou-se num museu sobre a imigração japonesa no estado. Outros se tornaram uma escola de capacitação de professores e um centro de lazer. Além disso, o projeto construiu um parque na região da margem do Rio Ribeira de Iguape, onde os moradores de Registro praticam esportes e lazer.

Os outros dois projetos apresentados foram o da construção do Museu Rodin em um casarão colonial de Salvador, na Bahia, que abrigará obras do artista francês a partir de maio de 2008 e o do Museu do Pão, que revitalizou moinhos de imigrantes italianos no sul do Brasil. Cinco moinhos na Serra Gaúcha, na cidade de Ilópolis, compuseram o projeto, que os restaurou e construiu um museu sobre suas histórias, relacionadas à produção de pães.

Eduardo Della Mano afirmou que “é salutar a esses projetos certa parceria com a iniciativa privada”. Para ele, essa associação garante a sustentabilidade do local trombado e canaliza recursos que qualificam a intervenção. “O tombamento não garante por si só a preservação do bem tombado”, acrescenta.

A polêmica envolvendo os processos de tombamento também pôde ser vista em julho de 2007. Elisabete Florido, jornalista moradora da Mooca, foi uma das idealizadoras do “Abraço ao Moinho Santo Antônio”, ato que teve o objetivo de impedir a demolição do prédio por parte das construtoras. O gesto não foi em vão, já que o Conpresp iniciou o processo de tombamento do Moinho, e de mais seis galpões da região, o que impede qualquer alteração em sua estrutura.

Agora, o espaço, que seria destinado a supermercados e empreendimentos imobiliários, já tem planejamentos para um futuro muito mais interessante para a memória da cidade.

“No caso dos galpões do entorno da linha férrea, existe um projeto da Secretaria Municipal de Cultura de se fazer ali um grande pólo cultural, com salas de cinema, anfiteatro, áreas de convivência e gastronomia, além do Memorial das Ferrovias.”, disse Elisabete.

A jornalista não acredita que com esse processo de tombamento a região será desvalorizada. “A valorização começa agora. É que as pessoas não compreendem ainda essa mecânica. O que diminuiu foi o poder especulativo sobre aquela área. As construções foram limitadas, não tem remembramento de lotes, portanto perdeu o interesse imobiliário.”

Em meio a essas disputas diversos projetos e visões são apresentados, porém nos casos pró-imobiliárias fica claro um interesse privado que acaba influenciando diretamente no espaço público. O medo da desvalorização precisa ser superado por parte da população que acaba sofrendo as conseqüências dessa guerra. O tombamento uma vez entendido como um ato de preservação, reaproveitamento e valorização do local pode ser encarado como um bem a cidade e a sua população.

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